sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Burocracia até na hora da morte

BPNGSÓ9DADES«»
Elevados custos e burocracia na emissão de documentos para transladação de corpos fazem com que muitos demorem vários dias para realização do funeral de quem faleceu fora de Angola. Dificuldades também são vividas para quem perde um ente-querido no país e tem de realizar funeral no exterior. Mesmo no país, há quem finte postos de controlo policial e passar com morto camuflado ou como que se estivesse a dormir. E há ainda quem opte por um esquema com pessoal da morgue para retirar o cadáver de forma ilegal.
Perder um familiar fora de Angola, além da dor da perda, implica gastar muito dinheiro e ainda aguentar a burocracia na emissão de documentos necessários para que o cadáver seja transferido. Há quem chegue a levar mais de 15 dias para terminar o processo e assim transladar o corpo. O NG conta-lhe, em primeira mão, relatos de quem sentiu na pele os dramas, viveu os momentos chocantes e ainda teve de desembolsar elevadas quantias de dinheiro para ver a última morada do seu ente-querido em solo angolano.
 
A família de Rafael Miguel, por exemplo, chegou a desembolsar 6.250 dólares para conseguir transportar o irmão, que morreu em Kinshasa, na República Democrática do Congo (RDC) para Luanda. Apesar de se tratar de um país vizinho, o processo “não foi fácil” e envolveu muito ‘sobe e desce’ e grandes ‘dores de cabeça”, lamenta Rafael Miguel. “As dificuldades foram tantas”, recorda. “A partir do outro lado, foi necessário tratar-se de uma série de documentação e que levou tempo e deu muito o que fazer.” Quando se deslocaram até à RDC, após a notícia do falecimento do irmão, os familiares levaram 4.500 dólares, mas o valor não foi suficiente para cobrir as despesas. “Ainda faltava dinheiro para embalsamar o corpo”. Para isso, a família teve de se endividar para conseguir suprir as necessidades. Da embaixada, receberam apoio na compra do caixão e no transporte, até ao Luvu.
 
Por causa dos custos e de dificuldades financeiras, preferiram fazer a transladação via terrestre, partindo de Kinshasa até a cidade de Luvu, no Zaire. De Lá, tiveram o apoio da Rádio provincial do Mbanz- Congo de Angola, porque o irmão era o funcionário da Rádio Nacional de Angola (RNA).
 
Enganar a polícia
 
Mas até para quem tem de transladar o corpo de uma província para outra vive quase os mesmos dramas. Alguns, devido à espera, optam por enganar os hospitais, fintam os postos de controlo e arriscam-se a viajar com o corpo num caixão escondido entre as mercadorias.
 
Foi o que fez Januário Baptista (nome fictício) quando percebeu que tinha o corpo do irmão a ‘congelar’ há mais de duas semanas na morgue do hospital ‘Américo Boavida’, em Luanda. Os familiares não conseguiam tratar dos documentos para que fosse autorizada a transladação para Malanje. Tudo aconteceu no ano passado, quando o irmão, de 48 anos, que tinha a vida montada em Malanje teve de se deslocar a Luanda para tratamentos. Mas acabou por falecer meses depois. A família exigia que o funeral fosse feito nas ‘terras da palanca negra’. Devido à burocracia para tratar dos documentos, aos elevados custos e à falta de recursos financeiros, a família teve de arriscar e criar um ‘esquema’ para transportar o corpo até Malanje sem levantar suspeitas. “O valor dos documentos e para se embalsamar o corpo chegaria aos três mil dólares”, justifica-se Januário Baptista, que afirma que a instituição exigia que “o pagamento fosse feito em dólares”.
 
Angustiados e com o receio de não cobrir as taxas diárias (500 kwanzas) para a manutenção do corpo em câmara ardente, os familiares tiveram uma ideia ousada: foram a um cartório tratar do boletim de óbito, mentindo que o funeral seria feito em Luanda. No dia seguinte, deslocaram-se à morgue, apresentaram o boletim e, logo de seguida, foi-lhes dado o corpo para que o funeral fosse realizado na capital. Já com o cadáver em sua posse, a família de Januário Baptista aguardou pelo ‘cair da noite’ para, de forma camuflada, seguir com o corpo rumo a Malanje, onde seria realizado o funeral.
 
Por volta das 20 horas de uma sexta-feira, dia de maior controlo policial nas estradas nacionais, a família, com o cadáver colocado num caixão e escondido entre mercadorias, partiu para uma aventura arriscada. Percorreu cerca de 400 quilómetros e passou por seis postos policiais. Em nenhum deles, a polícia conseguiu notar a presença de um caixão entre as mercadorias. Depois de seis horas de estrada, por volta das três horas do dia seguinte, e sem dormir, chegaram finalmente a Malanje. Postos lá, e como não podiam realizar o funeral, com os documentos de Luanda, tiveram de optar por um outro ‘esquema’: levaram o corpo até à morgue do hospital central de Malanje e informaram que o seu ente-querido faleceu em casa, por doença. Sem desconfiar do que realmente tivesse sucedido, a direcção fez a recepção do corpo. Seguiram os trâmites legais e cumpriu-se o desejo dos familiares de ver o seu familiar sepultado em Malanje.
 
Com o corpo ao colo
 
Histórias como a de Januário Baptista têm acontecido e passado despercebidas aos olhares da polícia. Quem não consegue pelas vias legais prefere os ‘esquemas’.
 
Há quem escolha simular que o parente está vivo. Foi a maneira que António Sebastião (nome fictício) escolheu para passar despercebido e conseguir chegar até ao Kwanza-Sul, com a filha de quatro anos, no colo, mas morta. A pequena estava em Luanda a passeio na casa da mãe. Adoeceu e faleceu no banco de urgência de uma das unidades hospitalares da capital. Segundo aquela unidade, era dever dos familiares levar o corpo até à casa mortuária. Mas não foi o que aconteceu. Como o pai queria que o funeral da filha fosse no Kwanza-Sul, tomou uma atitude radical: colocou a filha ao colo, vestiu-a, cobriu-a com lençóis, pôs-se num carro e partiu para o Kwanza-Sul. Por onde passavam, se fosse questionado, respondia que a menina estava a dormir. E assim chegou ao destino.
 
Além das fintas e dos ‘esquemas’, por causa dos obstáculos, o NG tem conhecimento de relatos de pessoas que têm retirado os corpos em conluio com funcionários da morgue, mas de uma forma ilegal. No entanto, chefe do departamento de cemitérios e morgues de Luanda, Filipe Mahapi, assegura não ter conhecimento de situações do género, lembrando que, no caso de transporte do cadáver para outra província, é necessário arranjar uma guia. Aquele responsável assegura que, caso haja saída de forma ilegal, ou mesmo um roubo de cadáver, o caso segue para a polícia. Paula da Silva, chefe do Departamento de Inspecção de Saúde de Luanda, também garante desconhecer situações em que as pessoas tentam transportar cadáveres, tanto para fora de Angola ou para outras províncias, “sem o cumprimento” dos requisitos, mas desconfia que isso possa acontecer por “via terrestre” onde existe “menos controlo”.
 
Luta para fora
 
As dificuldades não são apenas vividas por quem pretende transladar o corpo do exterior para dentro. O contrário também regista obstáculos. Vera Manuel perdeu o pai, português a residir em Angola, há três anos, por morte súbita, e viveu momentos “chocantes” e de “espanto” com o cenário “macabro” assistiu na morgue do hospital Maria Pia. “O depósito de cadáveres… só visto. Nem sequer há água para se levar os cadáveres. Os corpos ficam espalhados pelo chão”, lamenta, apontando a “falta de dignidade” até depois da morte. “Os cadáveres são atirados que nem sacos de batata. Um por cima do outro. E as pessoas para entrarem na morgue têm de passar por cima dos cadáveres”.
 
Para completar o ‘caos’, a família de Vera Manuel ainda teve de enfrentar dificuldades para transladar o corpo para Portugal. “Foi muito difícil por causa da burocracia e dos custos dos documentos”, lembra. “Só a documentação deve ter rondado cerca de cinco mil dólares”. Para fugir dos constrangimentos, a família contratou uma agência funerária que ficou encarregue de cuidar de tudo. “A funerária ajudou bastante a tratar dos documentos com a ajuda das pessoas que conseguimos para fazer mover os papéis”. Uma semana depois, e depois de terem gasto cerca de 20 mil dólares, conseguiram transportar o corpo para Portugal.
 
Depois de passar o sufoco, Vera Manuel lamenta que a translação no país seja difícil e exemplifica quem, por exemplo, na Europa, o processo leva no máximo três dias, por causa de questões de saúde pública e que aqui não se tem atenção esses prazos.
 
Regras de 1987
 
As regras para exumação de transladações estão definidas no regulamento sanitário de 1987, que exige vários documentos, consoante a origem e destino do cadáver.
 
Paula da Silva garante que dependendo de cada indivíduo ou familiares, a transladação é concretizada num dia.
Segundo a lei, se o cadáver for portador de um vírus que possa provocar alguma epidemia, o seu enterro deve ser “imediato”, ficando de ser transladado, seguindo, de imediato do hospital para o cemitério.
 
Requisitos para a transladação
 
-Cópia do certificado de óbito
-Acta de embalsamento
-Relatório de autopsia
-Cópia do bilhete de identidade do falecido e do requerente.
 
‘Carga especial’ sem taxas
 
O processo de transladação de um cadáver em Angola, quer seja para entrar em território nacional, quer para envio para o estrangeiro, envolve vária instituições ou empresas como transportadoras aéreas, a Empresa Nacional de Navegação (ENANA), Ministério da Saúde, Polícia Nacional e a Administração Geral Tributária (AGT), entre outras entidades.
 
De acordo com a AGT, o processo está “isento” de pagamentos de taxas, de direitos e demais “imposições aduaneiras”, incluindo taxa de prestação de serviço. Numa nota enviada ao NG, a AGT esclarece que “não há cobranças de taxas” porque, “teoricamente, um cadáver não é uma carga”, apesar de, pela forma como é transportada, parecer carga. “Tem um tratamento diferenciado” nos serviços aduaneiros da AGT, quer para celeridade no tratamento, quer pela “não cobrança de qualquer taxa”. O cadáver é assim considerado ‘carga especial’, devido aos cuidados que se devem ter em consequência dos riscos que o mesmo pode acarretar para a saúde pública.
 
A AGT exige apenas a apresentação dos documentos “necessários para a transportação de um cadáver” de Angola para outros países e para o território angolano:
Declaração de transladação do corpo, emitido pelo consulado do país de nacionalidade do defunto;
Boletim de óbito emitido pela Conservatória ou outra entidade competente;
Certificado de óbito emitido pela Autoridade Sanitária (onde consta a identidade do falecido, a causa da morte e se foram cumpridas as exigências sanitárias);
Alvará de transladação de cadáveres, emitido pelo governo provincial ou Administração municipal (no caso exclusivo de envio para outros países);
Auto de imposição de selo emitido pela Conservatória do Registo Civil da Comarca (caso exclusivo de envio para outros países);
Declaração de Saúde;
Acto de embalsamento do cadáver emitido pelo médico legista (quando necessário);
Documento de transporte;
Fotocópia do Bilhete de identidade ou passaporte do defunto e do agente funerário ou declarante;
Declaração do remetente (no caso exclusivo de envio paa outros países).
Apesar das queixas da burocracia e da demora na emissão, a AGT assegura que, a emissão dos documentos, é “célere e prioritária”, podendo levar no máximo duas horas.
Ainda segundo a nota, os países que mais transladam cadáveres para Angola são a África do Sul, Namíbia e Portugal. E de Angola para fora, é a China.
 
A lei da sanidade
 
A lei da sanidade determina que, para a transladação de cadáveres de uma província para outra, os familiares devem solicitar o transporte à direcção provincial da Saúde, mediante a apresentação de um boletim de óbito emitido pelo cartório e um livre-trânsito mortuário emitido pela direcção da Saúde. Caso seja feito dentro da mesma província, mas em municípios separados a mais de 150 quilómetros, deve ser realizado também mediante a apresentação do livre-trânsito mortuário emitido pela direcção da Saúde.
 
As licenças para a transladação de cadáveres de localidades, dentro da mesma província ou de uma província para o exterior, serão concedidas pelos administradores municipais, depois de ouvir o responsável da saúde da área.
 
Segundo a lei, nenhum cadáver pode ser transportado para fora da localidade em que se verificou o óbito, sem que se satisfaça as devidas formalidades, nomeadamente o condicionamento para o transporte e transladação de cadáveres que devem estar encerrados em caixão feito com chapa de zinco, chumbo, alumínio e em madeira apropriada suficientemente resistente e parafusada.
 
A abertura dos caixões provenientes do estrangeiro é autorizada pelos ministérios da Saúde e da Justiça e Direitos Humanos. A entrada de cadáveres em Angola é autorizada pelos ministérios da Saúde, das Finanças e do Interior.
 
Abertura das urnas
 
Urnas vindas do exterior
-Cópia do certificado de óbito
-Acta de embalsamento
-Cópia do assento de óbito
-Autorização da embaixada para transladação
-Cópia do bilhete de identidade do falecido e do requerente
 
Urnas provenientes do Interior
 
-Declaração e informação da Saúde
-Boletim de óbito, passado pela Conservatória
-Assento ou certificado de óbito
-Alvará do Governo provincial
-Cópia do bilhete de identidade do falecido e do requerente
 
Desenterros em cinco anos
 
Para realização das exumações a lei defini um período de cinco anos para que os restos sejam desenterrados e transportados para outra localidade. Na realização deste trabalho, os técnicos da Saúde, da Polícia, sobretudo o Serviço de Investigação Criminal e outros departamentos devem estar presentes.
 
νExumações
 
Para a realização das exumações os pretendentes devem apresentar:
-Cópia do requerimento dirigido a direcção cemitério onde foi sepultado
-Assento ou certificado de óbito, emitido pela Conservatória
-Cópia do Bilhete de Identidade ou passaporte do falecido e do requerente.
Em cada um dos processos os requerentes devem pagar 3.500 kwanzas de emolumentos para a direcção da Saúde de cada província. Todas as viaturas que transportam cadáveres devem ser desinfestadas depois da realização do inteiro.
 
Gastos detalhados
 
Um dos exemplos do que se pode gastar com uma transladação pode ser encontrado com um dos familiares de Rafael Miguel (ver texto) que gastou 6.250 dólares, há dois meses. Eis a lista dos gastos, em dólares:
300 – Certificado de sanidade
1.100 – Declaração de exportação de corpo:
800 – Transporte de Kinshasa para Luvu, no Zaire
1.100 – Caixão com zinco;
500 – Embalsamento
130 – Fato e lençóis
150 – Relatório médico
100 – Capa para forrar o caixão
150 – Reconhecimento dos documentos do notário
150 – Inspecção geral de sanidade
50 – Agência funerária que retirou o corpo da morgue
30 – Hora extra dos funcionários que trabalharam para fazer o tratamento do corpo:
15 – Lavar o corpo
5 – Documento da morgue para autorizar a saída do cadáver
85 – Migração da fronteira

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