Esta reportagem não deveria ser escrita. Foi o que nos alertou um membro da comunidade brasileira em Luanda alguns dias antes de deixarmos o país, no início de setembro. Estávamos em Angola havia mais de 20 dias. “Eu, se fosse vocês, não publicava o material que vocês gravaram. Pode deixar a nós que as ajudaram numa situação complicada.” Naquele mesmo sábado, segundo relatos, membros das forças de segurança nos procuravam pela quarta vez no local onde nos hospedávamos. De posse de cópias do nosso passaporte, queriam saber onde estávamos. Era mais um recado com o objetivo de impedir que publicássemos o que vimos e ouvimos no país africano, aonde viajamos para investigar o impacto das empresas brasileiras.
Durante a pesquisa, conhecemos familiares e amigos dos 15 jovens acusados de planejar uma rebelião que vão a julgamento a partir de hoje no Tribunal de Luanda. Eles participavam de um grupo de estudos baseado no livro “Da Ditadura à Democracia”, do americano Gene Sharp, com dicas práticas para realizar protestos pacíficos contra governos autoritários. Também conhecemos e conversamos com jornalistas, acadêmicos, diplomatas, empresários, diretores e funcionários de empresas brasileiras. Mas, na Angola do presidente José Eduardo dos Santos há pessoas com quem se pode e pessoas com quem não se pode falar.
No mundo da Central
“Na verdade somos todos ativistas, quer da Central, quer de outras frentes do ativismo. No final lutamos todos pela mesma causa: o fim da ditadura, da opressão e da tirania em Angola”, teclava rápido um dos rappers com quem nos comunicávamos por um grupo fechado no WhatsApp, logo nos primeiros dias da viagem. “Já agora somos um país democrático, mas temos um presidente no poder desde 1979.” Eram cerca de dez rapazes enviando uma profusão de vídeos, links e imagens pelo celular. Notícias de sites como Club K, criado por membros da diáspora angolana com um impressionante conhecimento do que se passa dentro do palácio, e Maka Angola, do jornalista investigativo Rafael Marques, dedicado a mapear a corrupção no país, pipocavam na tela. O papo fluía – queríamos encontrá-los. Logo veio um aviso: “Atenção com isso de hora e local… Houve gente q foi presa e acusados de conspiração e agora vamos envolver estrangeiros nisso”. Silêncio no grupo de WhatsApp. “Daqui por diante só responderemos perguntas pontuais”, escreveu um dos rappers, encerrando o papo virtual.
A Central é um dos grupos mais fascinantes hoje em dia em Angola. Um singelo canal de informações noFacebook, onde tem 19 mil seguidores, e no YouTube, com 2 mil inscritos, alimentado por jovens urbanos, os “centraleiros”. Surgiu em 2011 para cobrir as manifestações contra o presidente que, àquela altura, chegavam a reunir centenas de pessoas. Hoje, é uma das páginas que ajudam a dar visibilidade à meticulosa repressão dos serviços de segurança, assim como a denúncias de violações de direitos humanos. Funciona como um verdadeiro “megafone” dos problemas angolanos em um país que tem um único jornal diário, o estatal Jornal de Angola, a TV pública, TPA e a TV Zimbo, privada, que tem como acionistas os generais Manuel Hélder Vieira Dias Júnior “Kopelipa”, ministro de Estado e chefe da Casa de Segurança do presidente, e o vice-presidente, Manuel Vicente. Além de uma profusão de pequenos semanários críticos de pequena circulação.
Apenas depois de muita negociação conseguimos encontrar alguns dos centraleiros numa terça-feira, fim de tarde, em uma das entradas para o Zango, um gigantesco projeto habitacional no sudeste de Luanda para onde são transferidos compulsoriamente milhares de famílias removidas do centro durante o processo de “modernização” da cidade. Levamos uma hora e meia para atravessar 50 quilômetros no trânsito caótico. Ali em volta, barracos montados por folhas de zinco – nas paredes, no teto – mostram que nem todos os removidos conseguiram uma casa para morar. Chegamos ao local marcado: no carro preto, grande, de tração 4×4, cinco rapazes esperam por nós. Depois de rodar por algumas ruas, chegamos a uma casa de classe média.
Nossos entrevistados não são muito diferentes dos rappers da periferia de São Paulo: bonés coloridos, camisetas, bermudas, jaqueta da Adidas, tênis. Têm entre 22 e 39 anos e estão eufóricos. Dois deles são os “seguranças” do dia, tiveram de “fazer a varredura” no quarteirão algumas horas antes, diz um rapaz baixinho que pede para não ser identificado. Em seguida manda estacionarmos nosso carro dentro do portão.
“A maioria dos ativistas aqui não começaram com ativismo. Eu, por exemplo, comecei a ouvir rap. O rap e o ativismo ligou-me à causa”, diz Ermo Rebelo. Muitos deles conheceram o ativismo e as mobilizações por causa de Luaty Beirão, o rapper Ikonoklasta, um dos detidos que atraiu a atenção mundial no último mês. Passou 36 dias em greve de fome em protesto contra a detenção prolongada, que superou em muito os 90 dias permitidos por lei.
“Tem gente que nos procura e nos passa os materiais que conseguem nas ruas, o que chamamos repórteres de rua, e publicamos”, continua Ermo. Nenhuma das postagens é assinada. Muitos posts chegam a ter mais de 2 mil likes em um país com cerca de 21% de penetração de internet e onde apenas 30% da população tem eletricidade. Não só através das duas páginas, mas grupos no WhatsApp e redes sociais pessoais, são esses os jovens que espalham notícias importantes.
E há tanto a relatar. Angola é um prato cheio para jornalistas. Depois de 40 anos de guerra, sendo 27 deles em uma guerra civil sangrenta que vitimou mais de meio milhão de pessoas e manteve o território dividido entre o MPLA, partido que até hoje está no poder, e a Unita, o país rapidamente se tornou uma potência econômica africana. Segundo maior exportador de petróleo da África, teve durante anos as maiores taxas de crescimento do mundo, chegando a 20% ao ano. Mas, enquanto o círculo íntimo do presidente adquiriu riquezas incalculáveis – sua filha, Isabel dos Santos, é a mulher mais rica da África, com uma fortuna de US$ 3,4 bilhões e diversas concessões e contratos privilegiados com o governo angolano –, a vasta maioria das pessoas vive com menos de US$ 2 por dia. O país tem a mais alta taxa de mortalidade infantil do mundo – uma a cada seis crianças abaixo de 5 anos morre, o que puxa para baixo a expectativa de vida da população, de cerca de 51 anos. Falta água e luz constantemente até mesmo na capital, Luanda. Há pouquíssimos hospitais – e aqueles que podem viajam até a vizinha Namíbia em busca de uma operação. Os musseques, ou favelas, espalham-se pela capital, onde moram cerca de 7 milhões de pessoas. E as ruas são tomadas cotidianamente por pilhas e pilhas de lixo.
Como os demais movimentos de rua surgidos no mundo a partir de 2011, os “centraleiros” rejeitam os partidos tradicionais e se organizam de forma descentralizada. À medida que os protestos foram sendo reprimidos e meticulosamente desmantelados pelo governo, isso virou questão de sobrevivência. “Nós temos uma experiência muito triste, Camulingue e Cassule, líderes do Movimento Patrióticos que foram mortos. Decidimos não ter líderes”, reitera o rapper Leonardo Kossengue.
Alves Kamulingue e Isaías Cassule, ex-membros da Unidade de Guarda Presidencial (UGP), foram mortos em 2013, depois de terem organizado protestos para exigir o pagamento de salários atrasados e indenizações por terem sido desmobilizados. Frequentavam a Central e o pequeno círculo do ativismo caluanda. E nem estavam questionando o regime nem criticando a política do presidente. Mas tiveram um fim medonho: atraídos por um agente secreto infiltrado, foram sequestrados por membros da Polícia Nacional e dos Serviços de Informação, torturados e mortos. O corpo de Cassule foi abandonado no rio Benga, notoriamente habitado por crocodilos. Os executores dos crimes, sete membros do Sinse (Serviço de Inteligência e Segurança do Estado), confessaram e foram condenados de 14 a 17 anos de prisão. O mandante, um tenente-general do Exército conhecido como “general Filó”, não. Nem o espião infiltrado, durante dois anos, entre os rapazes e meninas da Central. A revelação de que o “hiperdivertido, sempre disponível” colega era um espião chocou os centraleiros, como mostra esse relato de partir o coração. E aumentou ainda mais as precauções, o medo, a desconfiança. “Tivemos que aprender a nos defender do regime”, resume um dos dois “seguranças” do dia.
“Eu tenho que andar com carro com vidro fumados, não ando nunca sozinho, sempre tem alguém comigo. Carrego sempre um aparelho que me conecta com os outros. Não fico até tarde em certos lugares. Tô atento a todo momento, tenho que ver sempre quem é quem. Por que aquela pessoa tá de óculos escuro a essa hora? Por que ele tá de chapéu? Por que ele me olha muito?”, vai listando Magno Domingos. “São traumas”. Magno tinha razão de desconfiar. Em outubro, ficou 22 dias preso sob acusação de falsa identidade, por portar uma permissão de jornalista. Tudo indica que foi uma cilada: apenas uma semana antes, ele publicara uma tocante carta ao filho do presidente, Zenu dos Santos, pedindo clemência aos amigos presos.
Naquela noite, pressentindo o seu infortúnio ali adiante, é ele quem interrompe os outros quando perguntamos, afinal, o que aconteceria se a entrevista fosse no famoso Largo Primeiro de Maio, no centro de Luanda? “Nem chegávamos a ficar cinco minutos. Logo que sentávamos, bastavam ver que vocês estão com essa câmera e que estamos com pessoas de tom de pele diferente da nossa, chegavam dois ou três carros da polícia. Tomavam a câmera. Íamos todos presos, vocês talvez depois saíam porque a embaixada ia interceder por vocês, nós íamos ficar presos como mais alguns golpistas…”
Francamente, aquilo nos pareceu um grande exagero.
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