O Supremo Tribunal Federal do Brasil decidiu,esta quarta-feira, rejeitar, com seis votos a favor e cinco contra, um recurso apresentado pela defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva com vista a impedir que este seja preso até ser julgado em todas as instâncias da justiça brasileira.
A votação
O juiz relator do processo Lava-Jato, Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux e Cármen Lúcia votaram contra o "habeas corpus" de Lula. Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio Mello e Celso de Mello mostraram-se a favor.
A ordem de votação dos ministros foi: Edson Fachin (relator), Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e Cármen Lúcia (presidente).
Edson Fachin rejeitou o "habeas corpus" do ex-presidente, citando juristas e referindo que é dever do Supremo Tribunal Federal (STF) respeitar as suas próprias decisões. "Não é possível respeitar quem não se respeita", disse, acrescentando que se o STF autorizou a prisão em segunda instância, deve decidir de acordo com este precedente.
Sublinhou também que não verifica qualquer "ilegalidade ou abuso no ato apontado".
Gilmar Mendes acabou por ser o segundo a votar, uma vez que tinha um voo marcado para Lisboa. Foi a favor do "habeas corpus" do ex-presidente e afirmou ter mudado a sua perceção sobre a execução de penas após a segunda instância. Para ele, a execução das penas não devem ser logo após a condenação em segunda instância, nem só no final do processo, o STJ deve ajudar a decidir, mas sublinhou que os casos de crimes graves e de risco para a sociedade podem justificar as prisões provisórias.
Além disso, criticou a imprensa brasileira, que classificou como "opressiva" e "chantagista", "culpando" também o Partido dos Trabalhadores, que seria promotor de desentendimentos entre os diversos setores da sociedade.
O ministro alertou também para o facto de o STF ter aberto a possibilidade para que seja decretada a prisão após condenação em segunda instância estar a levar a que as instâncias inferiores, como o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), subvertam uma decisão, que é uma "possibilidade jurídica", em algo automático e estendido a qualquer caso.
Alexandre de Moraes votou conta a aceitação do recurso, afirmando que "a organização da Justiça está na Constituição". "A presunção de inocência não pode ser interpretada de maneira isolada. Não pode ser prioritária em relação a outros princípios constitucionais", disse. Para o ministro, "não há impedimento de prisão em segundo grau, se há como prender em prisão temporária".
Luís Roberto Barroso foi também contra o recurso, justificando que seria incoerente declarar a decisão do STJ como ilegal sendo que esta se baseou no atual entendimento do Supremo, que permite a execução provisória da pena. Barroso acredita que esta questão representa uma contestação não à hipótese de prisão em si, mas sim à decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que negou um "habeas corpus" ao ex-presidente.
Afirmou também, durante a sua intervenção, que "todos devem ser tratados com igualdade", criticando a demora no sistema judicial brasileiro: "o sistema é feito para prender menino pobre, não prendemos os verdadeiros bandidos no Brasil (...) os pobres são presos em flagrante e lá permanecem até à condenação final".
Barroso sublinhou a importância de se confirmar se realmente houve "abuso de poder ou ilegalidade" na decisão do STJ, "que cumpriu orientação do STF".
O voto de Rosa Weber, que também foi contra, era o mais aguardado da sessão e a grande dúvida da noite que pairou durante quase toda a intervenção. A ministra é contrária à prisão em segunda instância, mas vinha, no entanto, a seguir o Supremo Tribunal Federal, que defende a autorização da execução provisória da pena. Abordando várias vezes a colegialidade (decisão que depende sempre de mais que uma pessoa, cujos pareceres têm o mesmo peso), Weber, que, em 2016, votou contra a prisão após a segunda instância, disse que negou quase a totalidade de pedidos de "habeas corpus" que recebeu no seu gabinete para acompanhar o critério maioritário do Supremo.
A ministra citou, entretanto, teorias do direito e disse que o processo de interpretação é, em grande parte, feito pelos tribunais. "As lacunas (da Constituição) precisam de ser consideradas a partir da interpretação", afirmou.
Luis Fux acompanhou a maioria da altura e votou contra o "habeas corpus". "O dispositivo da presunção da inocência deve ser avaliado de modo relativo", disse. Para o ministro, a jurisprudência do Supremo tem que ser íntegra, coerente e estável, caso contrário, deslegitima o poder judicial.
Dias Toffoli votou a favor do "habeas corpus" pedido, mas apenas parcialmente. Referiu que, assim como a ministra Rosa Weber, respeita o "princípio da colegialidade" e considera que é necessário seguir a repercussão geral, mas apenas em decisões monocráticas. Defendeu que o ex-presidente não seja preso até que os recursos no STJ sejam esgotados.
Ricardo Lewandowski, no seu discurso, afirmou que "a prisão é sempre uma exceção; e a liberdade, a regra", deixando, desde logo, claro que o voto seria a favor. Segundo o ministro, o STF pôs o "sagrado direito à liberdade num patamar inferior ao de propriedade", referindo que uma pessoa não pode ser levada para a prisão antes do trânsito em julgado.
"O TRF4 decidiu pela prisão automática, o que não existe em nenhum país, por isso, entendo viável conceder a ordem. Prisão precisa de ser fundamentada", disse.
Marco Aurélio Mello afirmou ser a favor do "habeas corpus" de Lula, afirmando não defender o "populismo judicial".
"No Brasil se presume que todos sejam salafrários até que se prove o contrário", disse o ministro, que acredita que a garantia constitucional de que ninguém será considerado culpado até ao trânsito em julgado de sentença penal condenatória é uma condição para que se possa chegar à execução da pena.
Marco Aurélio Mello afirmou ainda que estão previstos embargos de segundo grau e recursos nos tribunais superiores.
Celso de Mello afirmou, por sua vez que "os poderes do Estado são limitados pela Constituição", mas que esta "não pode submeter-se ao império dos factos e circunstâncias", votando, por isso, a favor do "habeas corpus" e empatando os resultados. Para o ministro, os julgamentos do plenário "não se podem submeter a pressões externas", acrescentando que a utilização da opinião popular como fundamento para decisão judicial pode ser "abusiva ou ilegal".
"Sem trânsito em julgado não há culpa", afirmou. Além disso, referiu também que dizer que é possível prender réus que interfiram no processo (como ocultação de provas ou perseguição a testemunhas, por exemplo) é diferente de executar as penas após a condenação em segunda instância.
Cerca das 4 horas da manhã em Portugal continental, deu-se o empate nas votações, ainda a faltarem dois ministros.
O advogado do ex-presidente Lula, José Roberto Batochio, pediu que a presidente do STF, Cármen Lúcia, deixasse de votar, dizendo que haveria um histórico de que a chefia do Supremo não votasse em casos de "habeas corpus". A presidente não concordou por ser uma questão constitucional, mas colocou em votação para não haver contestação. A sessão continuou com o voto da presidente, após todos os ministros presentes concordarem.
A sessão já ia longa - há mais de 10 horas -, então, a presidente preferiu não ler todo o voto por ser "extremamente longo". Referiu que iria rejeitar o "habeas corpus", seguindo os seus votos a respeito do assunto nas últimas vezes em que o tema foi a votação no STF e sublinhando a importância do princípio da igualdade. Na sua opinião, não é certo tratar de maneira diferente os que têm mais ou menos recursos financeiros.
"O STF já admitiu antes a possibilidade da prisão em segunda instância", disse Cármen Lúcia que acredita que a possibilidade de não haver prisão em segundo grau leva à impunidade.
Apesar de os votos de Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski terem sido favoráveis ao "habeas corpus", os votos foram feitos de forma diferente. Gilmar e Toffoli votaram para conceder o salvo-conduto até ao julgamento no Superior Tribunal de Justiça. Lewandowski defendeu a liberdade de Lula até um eventual julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF).
No julgamento, eram precisos seis votos dos 11 ministros do STF a favor do recurso para definir que Lula podia recorrer em liberdade durante mais tempo. Caso contrário, começava a cumprir a pena após o fim da tramitação do processo na segunda instância. A avaliação do "habeas corpus" contra a prisão do ex-presidente começou por volta das 14 horas locais (18 horas em Portugal continental) desta quarta-feira na instância judicial máxima do Brasil, em Brasília, e prolongou-se pela noite dentro.
Além disso, dos 11 ministros, três foram nomeados por Lula e quatro pela sucessora, Dilma Rousseff, também do Partido Trabalhista.
Contudo, fora a decisão desta quarta-feira, a defesa de Lula tem até à próxima terça, dia 10 de abril, para pedir esclarecimentos sobre pontos específicos, uma vez que ainda cabe ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região um recurso derradeiro, os chamados "embargos dos embargos".
O ex-presidente Lula acompanhou o julgamento ao lado de Dilma Rousseff numa sala reservada, sem televisão - sendo informado dos votos pelos assessores -, no segundo andar do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo, onde foi montada uma estrutura para que os simpatizantes de Lula pudessem seguir a votação.
A sessão foi também acompanhada por várias manifestações pelas ruas a favor e contra o ex-presidente. Depois do voto da ministra Rosa Weber, as pessoas começaram a dispersar e a deixar a estrutura onde assistiam.
O caso
Lula da Silva foi, em janeiro, condenado a doze anos e um mês de prisão após dois julgamentos de um mesmo processo ligado à operação Lava Jato, o maior escândalo de corrupção no Brasil, no qual foi acusado de receber um apartamento de luxo como suborno da construtora OAS, em troca de favorecer contratos desta empresa com a estatal petrolífera Petrobras.
O ex-presidente proclama-se inocente e tem vindo a enviar vários recursos da decisão para que não seja preso, ou, pelo menos, ganhe algum tempo. Até hoje, o ex-presidente já viu os recursos negados na segunda instância da Justiça Federal e não teve sucesso no "habeas corpus" que enviou ao Supremo Tribunal de Justiça (o que motivou este último recurso em discussão). De referir que a Procuradoria-Geral da República (PGR) é a favor da prisão após a condenação em segunda instância.
O mais recente recurso, o chamado "habeas corpus" - garantia constitucional a favor de quem se vê privado, ilegalmente, da sua liberdade por parte de uma autoridade legítima - foi pedido pela defesa de Lula em relação à decisão do Supremo Tribunal de Justiça e é o mote do julgamento desta quarta-feira. Os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal determinaram se esse recurso era válido ou não, decidindo se, chegando o processo à segunda instância da justiça brasileira, o presidente é logo preso, ou se aguarda, em liberdade, pela passagem por todas as instâncias da justiça.
A liberdade de Lula está a ser garantida por um salvo-conduto (documento emitido pelas autoridades do Estado que permite a livre transição, ou sob escolta policial ou militar por um determinado território) concedido pelos ministros do Supremo.
Além deste caso, existem mais sete denúncias que têm levado Lula da Silva aos tribunais.
As consequências da decisão do STF
Especialistas consultados pela Lusa comentaram o que será tratado neste julgamento, explicando que, após as condenações em primeira e segunda instâncias, "tem ainda recursos para tentar obter a sua absolvição".
"Este 'habeas corpus', porém, não foi pedido para obter uma absolvição, mas para saber se o ex-presidente irá responder [no processo] em liberdade", explicou professor de Direito Penal do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), João Paulo Martinelli.
Celso Vilardi, advogado e professor de Direito Penal da Fundação Getúlio Vargas (FGV), avaliou que o recurso pede que se cumpra uma determinação que já consta na lei brasileira. "A Constituição do Brasil tem uma peculiaridade que não se vê em constituições de outros países do mundo, porque determina que o princípio da presunção de inocência seja mantido até o trânsito em julgado, o que significa o esgotamento de todos os recursos", afirmou.
Na hipótese de Lula da Silva ver o seu recurso negado, os dois juristas admitiram ele pode ser preso ainda esta semana, já que existem ainda burocracias a serem cumpridas antes da execução da ordem de prisão.
Os dois causídicos expressaram que o ex-presidente poderá ficar livre porque o "habeas corpus" apresentado pelos seus advogados tem muitas hipóteses de ser aceite pela maioria simples dos onze juízes do STF.
O professor da FGV manifestou o seu desagrado com tema do julgamento, alegando que um assunto tão importante como a presunção de inocência, que poderá criar jurisprudência e afetar outros processos no país, não deveria ser analisado a luz de interesses relacionados com o caso de Lula da Silva.
"Uma decisão desta envergadura jamais deveria ser julgada num caso individual (...). É lamentável, porque o ex-presidente tem inúmeros opositores e seguidores. Isto contamina o julgamento e o sistema Judiciário", criticou.
"Afeta a imagem da Suprema Corte (STF), que jamais poderia estar num ambiente de torcida (claque) de futebol. Tem metade da população a querer que o ex-presidente seja preso e metade a querer que não seja preso. É muito ruim que uma questão constitucional que deve valer para todos os cidadãos brasileiros esteja a ser discutida num caso individual", vincou.
Além de determinar o futuro de Lula da Silva, o veredicto dos juízes do STF pode complicar as presidenciais marcadas para outubro no Brasil porque o antigo chefe de Estado anunciou a sua pré-candidatura pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e tem chance de ganhar a votação, porque liderou todas as sondagens sobre as eleições já realizadas no país.
As regras eleitorais brasileiras proíbem que um condenado em segunda instância concorra a um cargo eletivo.
O ex-presidente já anunciou que tentará reverter esta barreira legal, mas, para o fazer, precisa de permanecer em liberdade.
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