terça-feira, 30 de outubro de 2018

“O que fui, o que sou, o que serei”. Boss AC fala sobre tudo numa longa e franca entrevista de carreira

BPNGSÓ9DADES«»

25 anos de caminhada, um novo álbum acabado de sair, as diferenças entre os tempos de “Rapública” e a ‘africanidade’ assumida de hoje. “Se houvesse uma seleção nacional da música portuguesa, quero acreditar que teria lá um lugarzinho”


Um quarto de século após ter pisado o estúdio pela primeira vez para gravar a sua participação no mítico registo “Rapública” e duas décadas após a estreia oficial com Mandachuva, Boss AC está de volta com um novo trabalho em que afirma perentoriamente que “A Vida Continua”. A sustentar essa pretensão há uma carreira que se faz de grandes êxitos – ainda cantamos todos o ‘Sexta-feira’, certo? – e do respeito dos seus pares, como ficou evidente quando Sam The Kid o convidou para a primeira ‘emissão’ da sua TV Chelas, com o tema “Caravana”. É sobre tudo isso: o passado e o presente e um bocadinho também sobre o futuro que Boss AC conversa, recusando a paternidade de um movimento que está em ebulição: “pai não, talvez seja um dos tios”.
Apresenta agora um novo álbum, numa altura em que passam 20 redondos anos sobre o primeiro. Mostra uma amplitude que é singular no panorama português. Que tipo de peso ou de autoridade é que esta bagagem deposita nos seus ombros?
A pergunta nunca me tinha sido posta desta forma. Prefiro não pensar nas coisas dessa forma e passo a explicar porquê: tenho feito um exercício, ou pelo menos tentado, de não me sentar à sombra da bananeira no sentido de viver de antigas glórias. Tenho muito orgulho no meu percurso, em tudo o que fiz, mas eu lanço os álbuns todos – e neste caso específico, o de “A Vida Continua” – quase pensando que sou um artista novo: “ok, eu existo a partir de hoje”. Quero manter todas as pessoas que me seguem desde o início, mas quero conquistar pessoas para quem o Boss AC ainda não existe. Há uma abrangência no que faço, principalmente num género que muitas vezes é conotado como sendo quase...
Unidimensional?
Correto. A minha forma de estar na música é global, transversal a cores, estratos sociais, a idades, e essa postura orgulha-me muito. Veio mostrar-se ainda mais depois do megassucesso que foi o ‘Sexta-feira’, porque eu tão depressa tinha os miudinhos de 4 anos todos contentes porque sou o Boss AC, como tinha os avós de 80 a pedir fotos. Eu presumo que a pergunta sobre o tal peso da autoridade ou da responsabilidade se coloque da parte de quem está de fora a olhar para mim, mas a responsabilidade e a exigência é muito mais interna – eu exijo muito mais de mim do qualquer outra pessoa. Para mim há duas hipóteses: igualo aquilo que já fiz ou então supero, mas procuro nunca baixar.
Nunca se sentiu um farol, um ancião desta cultura? A ideia não acarreta um posto?
Estou sempre a ser conotado como o pai, que é algo que eu refuto completamente. O pai não serei com certeza, serei se calhar um dos tios, porque fomos vários. Isto não foi um movimento criado por mim, de forma alguma. Eventualmente da primeira fornada devo ser o que tem mais visibilidade, em falta de melhor palavra, mas pai não sou com certeza. Há essa responsabilidade, sim, até porque o ‘O Verdadeiro’ fala dessa caminhada. Quase que tento resumir em 4 minutos o que se passou em 25 anos. Tenho muito pudor quando me chamam um dos embaixadores do hip-hop. Represento a minha verdade, o meu hip-hop. Dentro do hip-hop há muita coisa com que não me identifico, da postura à mensagem. Sim, serei um dos representantes nesta jovem cultura que é o hip-hop, porque o hip-hop é, na verdade, uma cultura jovem. Sim, nessa perspetiva serei um ancião, mas espero que seja uma virtude e não um defeito.
Esse estatuto sai sublinhado se em vez de “Mandachuva” tomarmos como baliza para a sua carreira o “Rapública” [compilação de novos projetos em torno do rap português, que incluía nomes como Boss AC e Black Company]. Há 25 anos, quando vocês estavam em estúdio a preparar o “Rapública”, mesmo nos seus mais delirantes sonhos, conseguia imaginar um 2018 com estes contornos? 
Não creio, longe de mim. A verdade é que nós, falo no plural – do grupo Boss AC – já estávamos a fazer coisas há um, dois, três anos [quando chega “Rapública”]. Já tínhamos feito muitos concertos. Aliás, foi a partir dos concertos que chamámos a atenção do Hernâni Miguel, que por sua vez fez a proposta à Sony. Foi um concerto em específico, o festival de Rap do Trópico, em Santos [Lisboa], que eu diria que saíram todas as bandas que participaram depois no “Rapública”, com a exceção do Funky D, que não tinha participado no festival.
Voltando a insistir nessa veterania, que erros vê esta nova geração de MCs cometer que possa identificar como algo que também possa ter feito? Há asneiras que são reincidentes?
É provável que sim, mas também acredito que só se aprende caminhando, ou seja, vais ter que cair por mais que te avisem. Há algumas coisas mais globais e mais abstratas que eu posso dizer... uma delas é ter a noção da dimensão do nosso mercado e ter a noção de que as coisas são cíclicas. Hoje és o maior, amanhã se calhar já não és.
Aflora isso nas suas letras... 
“Uns chegam, outros vão, mas eu não”. Isto é cíclico. O país é pequeno, apesar de termos alguma lusofonia, estamos longe de ter um mercado com a dimensão que, por exemplo, o mercado espanhol terá. Acredito que o Boss AC em Espanha, para além da Espanha apanharia toda a América Latina, eventualmente os Estados Unidos também, onde já se fala quase tanto mais espanhol do que inglês. No caso específico de Portugal, não é bem assim. Apanhamos a África Lusófona, mas que em termos de mercado para sustentar uma carreira não é o suficiente, e depois temos o nosso irmão do outro lado do Atlântico que na verdade ainda olha para nós com alguma desconfiança. Pode não ser o mais politicamente correto dizer isto, mas eu creio que o Brasil ainda não descobriu Portugal e tudo o que Portugal tem para oferecer, seja do hip-hop, seja do que for.

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Acha que este disco seria o mesmo se não tivesse feito o ‘Caravana’ com Sam The Kid? De alguma maneira, a reação a esse tema, o facto de ter sido quase reposicionado dentro da cultura com essa música, afetou o caminho para este álbum?
Senti uma grande necessidade de fazer um retrocesso em termos do processo criativo, rumo àquela sonoridade mais próxima do início da minha carreira. O álbum anterior foi um sucesso tremendo, um disco em que assumi uma vertente mais pop, porque foi um álbum mais de banda, tinha muito menos samples, era mais tocado. Mas eu disse: “ok, está feito, agora quero fazer outra coisa”. E a outra coisa é fazer aquilo que eu já tinha feito há 20 anos [risos]. Curiosamente, depois fui convidado pelo Sam, e quando estávamos a falar das ideias, eu disse “epá, sim”. Resumindo: não foi pela reação à música que fiz com o Sam que o álbum tomou esta direção, mas essa música reforçou a direção que eu já queria seguir. Como as coisas correram bem e o sucesso mainstream e a minha visibilidade foram muito para além do hip-hop, havia alguma desconfiança...
Sentiu que houve um momento em que a própria cultura lhe apontou o dedo?
Esse momento existe desde o dia zero. Os treinadores de bancada sempre existiram e sempre vão existir. Qualquer pessoa que esteja nesta área da música – e não só, que tenha uma vertente pública – sabe que as pressões são de todos os lados. Imagine: se lanço algo completamente old school vou ter quem diga “epá, este gajo está nisto há tanto tempo, parou no tempo, está em 2018 a fazer o mesmo que fazia em 1994”. Reverso da medalha: chego a 2018 e faço uma coisa completamente moderna de trap: “ah, este gajo esqueceu-se de onde vem, esqueceu-se das origens”. Há sempre alguém disposto a apontar o dedo. Uma das razões pelo qual demorou tanto tempo este processo foi o desejo de fazer algo que se reconheça que tem a minha essência, mas onde também se perceba que é um Boss AC de 2018, de 2019 e de 2020. Não parei no tempo, faço por me reinventar, e creio que consegui fazê-lo na escolha deste álbum, até porque um dos conceitos do álbum era o de tempo: o ontem, hoje e amanhã, o que fui, o que sou e o que serei, e que também se reflete nas músicas e nos próprios convidados. O outro conceito era ‘menos é mais’: um álbum mais curto, mais minimalista, mais máquina, mais virado para os samples do que o trabalho anterior. Não mudaria absolutamente nada, com uma única exceção: o tema que dá nome ao álbum tinha um sample que não foi aprovado. Tive que fazer uma nova versão, de que gosto muito, mas por razões sentimentais preferia ter tido a primeira.
Estamos a falar de um sample do brasileiro Tim Maia…
Eu estava a tentar não dizer nomes [risos].
Os seus samples nascem como homenagens a música de que gosta?
Sempre, até agora tem sido condição sine qua non. O que eu samplo são coisas que eu oiço, de que gosto. Não me via a samplar uma música de um artista com que eu não me identificasse ou de que não gostasse.
Neste disco, e falando de samples, há Ferro Gaita e Simone de Oliveira. Aacaba por ser quase um retrato da sua própria personalidade: algures entre Portugal, Cabo Verde, as raízes, o presente...
E havia o Brasil, que desapareceu... Tenho muito gosto em reinterpretar, em samplar, em recuperar, reinventar a lusofonia, não só a música portuguesa, mas toda a lusofonia. É um processo que vem desde o primeiro dia porque já no “Mandachuva” fazia isso. O ‘Reconhece’ sampla uma morna, eu tenho um sample da Cesária algures metido lá no primeiro álbum (que ninguém sabe, mas sei eu), tenho um sample de jazz português…
Passou depois mais tarde pelos Madredeus...
Madredeus, Vitorino, muitas coisas. Voltando especificamente a este álbum, tenho os Ferro Gaita, que curiosamente foram samplados mas a quem eu dei créditos de ‘featuring’ por duas razões: primeiro porque há a intenção de fazer vídeo dessa música, e a ideia inicial era eles recantarem a música, mas depois achei que fazia mais sentido pegar na original e dar-lhe ali uma volta. Depois, tinha um tema que fiz, uma participação com o Miguel Gameiro [voz dos Polo Norte] de 2010… a música chamava-se ‘O Homem e a Bala’. Eu tinha um verso, e gostei tanto desse verso que o extrapolei para criar uma música própria que é a ‘A Bala’. Adorei o tema, a metáfora... Mas falando especificamente do sample: tinha um sample do Django Reinhardt, que implicaria pedir licenças e autorizações, mas disse “pá, não quero usar este beat, vou à procura de um beat diferente”. Nas várias ideias, em conversa na net com o produtor KoolTuga, ele disse-me: “eu tenho aqui um stashzinhode tesourinhos de música portuguesa”. E eu: “olha, eu também tenho”. O nome da pasta até é ‘Para Samplar’. Ele mandou-me uma pasta com, sei lá, cerca de 100 músicas, e eu quando estava lá diggin’ in the crates, ouvi [canta música] e disse “fechou a loja, já não procuro mais nada, é mesmo isto”. Tanto que entre eu descobrir o sample e ter a música pronta não passou mais do que uma hora, de certeza. A música resultou na perfeição, a meu ver. Em relação ao tema do Paulo de Carvalho, o que dizer? [risos] Essa música foi uma descarga. Quando tu chegas a um lugar e descarregas tudo, as tuas emoções. A música foi escrita, composta, gravada, misturada numa manhã.
Catarse.
Quase um exorcismo. Comecei a escrever primeiro, não tinha beat, mas já tinha esse original do Paulo de Carvalho, ‘Maria Vida Fria’, na minha caixinha de sampláveis. Quando eu estou a ouvir e aquilo começa [canta música] idem idem aspas aspas. Tal como com a música da Simone: “não vais a mais lado nenhum, pumba”. Fiz a música, e na altura não tinha a mínima intenção de usá-la, mas o tempo também acaba por ser o melhor conselheiro. Não voltei a ouvir porque a música mexia e mexe ainda muito comigo. Foi uma decisão muito difícil se iria ou não usar a música, mas depois a própria família do Bernas [DJ português falecido em 2017], a quem dediquei a música, encorajou-me a usá-la – e eu achei que sim, que se calhar era válido. Voltei a ouvir a música passados muitos meses, e já a ouvi de outra forma. Continua a ser um tiro no estômago mas deixou-me em paz. Já não me custa ouvir a música. O passo seguinte foi ligar ao Paulo de Carvalho...
Dá a ouvir as suas músicas aos artistas que sampla?
Sempre. Também tentei contactar a D. Simone de Oliveira, mas ainda não a apanhei. Sei que ela sabe da existência da música. Até porque muitas vezes, tanto no caso da D. Simone de Oliveira como do Paulo de Carvalho, não são eles os detentores dos direitos do master. É mais uma questão de respeito, dizer “vou usar a sua música e vou reinterpretá-la”. No caso específico do Paulo de Carvalho, foi também uma das razões por que eu disse que tinha mesmo que usar a música. Expliquei-lhe o contexto da música, que eu acho que ele depois facilmente percebeu ouvindo-a, e ele ligou-me logo a seguir a dar os parabéns: “AC, tu tens que usar isto. Isto é maravilhoso”. Agradecido por eu ter repescado a música e a ter reinterpretado, e obviamente de ego cheio porque estamos a falar... do Paulo de Carvalho, não é?
Boss AC
Boss AC
RITA CARMO

O HIP-HOP DE BARBA RIJA

Sente que até aí o hip-hop conquistou terreno? Neste momento ter gente como o Paulo de Carvalho a dar-lhe os parabéns é sinal de que algo mudou?
Creio que sim. Não sei se o Paulo de Carvalho não me daria a benção há 20 anos, também… Não posso dizer isso. Acontece é que há 20 anos eu nem pedia licença. Durante anos e anos nunca pedi. A minha música tem mais visibilidade e, por isso, tenho mesmo que obter sempre esses consentimentos. A mesma coisa aconteceu com o ‘Que Deus?’. Falei com os Madredeus, que disseram: “amigo, siga, está do caraças”.
Sente que a sua escrita e a sua produção evoluíram em paralelo? Estão no mesmo nível ou cresceu mais numa das vertentes? 
Essa é uma pergunta que eu já me coloco há muito tempo e ainda não consegui chegar a uma conclusão. O que eu acho é que sim, andam lado a lado, de mão dada, na medida em que eu sou o melhor MC para os meus beats e os meus beats são os melhores beats para este MC [risos]. Gosto de pensar que cresci como artista, que cresci como MC, como músico e como produtor. Tenho tentado sempre manter-me atual, porque os flows mudam, as coisas mudam, as próprias técnicas de produção mudam, e vou também aprendendo bastante com a nova geração. Ouço muito do que se faz da música nova, não só do rap, mas música urbana e não só. Acho que tenho tanto a ensinar à malta mais nova como tenho a aprender.
Dê alguns exemplos de gente da nova geração com quem tenha sentido que aprendeu alguma coisa. 
Esta nova linguagem do trap... Eu não faço trap, mas tenho elementos de trap. Ora, quandocomecei havia duas hipóteses: por as mãos na massa e aprender sozinho ou ardeu. Agora não: há uma sonoridade qualquer, uma coisa que nunca fiz e de que gosto, vou ao YouTube cinco minutos e tenho um tutorial a dizer como é que se faz. “Aquele roll de hi-hat é muita giro, como é que se faz isso? Eu gostava de ter aquele 808 a soar como a música Y”. Em termos dos flows, a mesma coisa. Esta história dos flows tercinados [faz o som], que são coisas que um gajo vai aprendendo e diz “eu gostava de incorporar esse flow naquilo eu faço”. Acho que é preciso alguma humildade para perceber que não sabemos tudo.
Boss AC
Boss AC
RITA CARMO
Neste disco, há letras que são de homem feito, de barba rija, que não esconde a idade que tem nem a experiência que acumulou. Sente que no rap em Portugal há pouca gente a escrever dessa perspetiva mais adulta?
O hip-hop está num momento de fertilidade e de produtividade como nunca houve. Onde é que eu apontaria o dedo? Nas escolhas. A mim falta-me conteúdo. Consigo ouvir as músicas, gosto, estão bem produzidas, estão bem gravadas, com bons vídeos, bons flows, bons MCs, bons produtores, mas depois não retenho nada. Ouves aquilo, achas aquilo engraçado num determinado contexto. E isso é uma coisa que sempre evitei. Independentemente da abordagem quando pego na música, gosto que a pessoa oiça a música... Pode chegar ao fim e não gostar, mas percebeu. Há ali uma narrativa, percebe-se o que é que eu quis dizer, percebe-se do que é que estou a falar. E às vezes acontece-me ouvir músicas de que gosto bué e depois “ya, mas estás a falar do quê?”.
Entre o momento em que a letra sai da cabeça e o momento em que é gravada ainda há transformações?
Eu acho que é 50/50, mas há sempre alterações pequeninas, outras vezes nem por isso... No caso específico deste álbum, como demorei algum tempo a fazê-lo, tive tempo para ir ouvindo. “Pá, esta frase aqui podia mudar, isto aqui eu não gosto muito, isto aqui podia ser dito doutra forma”. E às vezes é uma questão mesmo da forma como digo as palavras, às vezes o pôr uma virgula ou tirar uma vírgula é o suficiente para mudar a musicalidade daquilo que estou a dizer.
Voltando à música ‘A Bala’. É curioso o facto de dizer que a bala não escolhe se atinge o polícia ou se atinge o bandido. Olhando para as notícias, não percebemos bem quem é que são os bons e os maus. É uma bala que vai direito ao alvo que é a realidade neste momento?
Nesta altura dos Trumps, dos Bolsonaros, dos Erdogans e dos Putins, este discurso populista cada vez mais em ascensão, o extremismo... No caso específico de ‘A Bala’… A arma não escolhe quem vai matar, se é o bom ou se é o mau. A bala em si é inofensiva. Nós temos que temer o homem por trás da arma porque a bala está ali numa gaveta guardadinha, não faz mal a ninguém. Quem mata o homem é o homem, não são as armas. Nós não sabemos quem é o vilão, não sabemos quem é o bom. Esta situação da senhora que matou o marido ou a outra que matou a mãe… são pessoas que podiam ser os meus vizinhos, podia ser a senhora que me atende no café, podia ser a educadora da minha filha. Ou seja, são pessoas que à partida não pensarias que seriam capazes de cometer crimes hediondos. Uma coisa é uma pessoa que seja um estereótipo de bandido, um gajo que mete medo. Mas aquela senhora de meia idade, de boas famílias, tranquila, vai às compras, fala com as vizinhas, e de repente da próxima vez que ouves falar dela está nas notícias porque matou o marido à custa de uma herança ou do seguro... Isto faz-nos pensar: “afinal quem são os bons e quem são os maus?”. Fiz essa música na perspetiva da bala. Qual é a opinião que a bala tem? É a opinião da música. “Eu não tenho opinião nenhuma, faço o que me mandam fazer”.

ÁFRICA MAIS PERTO

Outra das coisas que se sente neste seu novo álbum é o lado africano. A cena musical portuguesa parece que nunca foi tão africana como agora. Sente o mesmo?
É provável que sim. Tem sido um processo em crescendo. Se pensarmos que as principais rádios e os principais meios de comunicação nos últimos anos passaram kizomba a pontapé – algo impossível, impensável há uns anos atrás. Agora ninguém estranha. Essa africanidade já existia, se calhar não estava tão difundida e não era tão pública. De certa forma, creio que o hip-hop tem a sua quota-parte de culpa porque o hip-hop tuga sempre andou de mãos dadas com o hip-hop em crioulo, desde o início. Já no “Rapública”... Os primeiros a fazê-lo em disco foram os Family, que tinham o ‘Rabola’, mas já havia uma série de grupos que o faziam e que vieram a fazê-lo depois, os TWA e companhia limitada. Malta portuguesa, mas cabo-verdiana também e que sempre fez questão de pôr essas influências na música. A influência angolana também é evidente, mas no calão. Porque muito do calão, os bués que a gente diz e outras coisas, vem do calão angolano.
Hoje um miúdo branco ou negro pode escolher ter como ídolo o Boss AC, o Carlão, o Anselmo Ralph, a Sara Tavares. Há 20 anos não havia caras assim, com essa dimensão pública, que as pessoas pudessem eleger como ídolos?
Quer dizer, havia as caras, mas elas não estavam “in your face” [risos]. Eu quero acreditar que sim, quero acreditar que estamos numa sociedade melhor e que as coisas mudaram para melhor, mas acho que seria ingénuo se achasse que tudo mudou para melhor – provavelmente há coisas que podem não ter mudado para melhor. Por outro lado, estamos agora nesta idade da informação (ou da desinformação, não sei) e temos muito aquela visão de que isto é o final dos tempos, que está tudo doido, guerras nucleares iminentes, extrema-direita… Mas se depois formos ver isto de uma forma completamente científica, a olhar para os números, os indicadores dizem que nós vivemos os tempos mais prósperos de sempre: a literacia está cada vez maior, a esperança de vida está cada vez maior, há cada vez mais doenças a serem erradicadas. É um bocado aquela história de olhar para o copo meio cheio ou meio vazio… Isto é o meu lado mais otimista [a falar], daí o título “A Vida Continua”. Quero acreditar que vivemos tempos melhores.
Hoje vê-lo com uma camisola da seleção nacional tem algum significado?
Obviamente que visto a camisola com todo o orgulho. Principalmente porque creio que se houvesse uma seleção nacional da música portuguesa ou do rap, quero acreditar que teria lá um lugarzinho.

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