Força Suprema: Uma empresa familiar de filhos do rap
Vivem há mais de 20 anos em Portugal,
pelo menos dez deles dedicados ao rap. Nos últimos anos transformaram-se
num fenómeno em Angola e em Portugal, apesar de poucos o saberem. Agora
têm vídeos com helicópteros e querem conquistar o Brasil.
Em Portugal, dois dos cantores de maior sucesso dos últimos tempos são o angolano Anselmo Ralph e Nelson Freitas, de origem cabo-verdiana. Em Angola, por sua vez, dois dos nomes mais badalados do momento são osrappers NGA e Prodígio, angolanos, mas a viver em Portugal há mais de 20 anos.
Em Portugal, dois dos cantores de maior sucesso dos últimos tempos são o angolano Anselmo Ralph e Nelson Freitas, de origem cabo-verdiana. Em Angola, por sua vez, dois dos nomes mais badalados do momento são osrappers NGA e Prodígio, angolanos, mas a viver em Portugal há mais de 20 anos.
Há 15 dias, nos Angola Music Awards, que
distinguem os profissionais da música naquele país, os grandes
vencedores foram a cantora Yola Semedo e NGA, ambos com três galardões.
Ele ganhou os prémios de Artista Masculino do Ano, Artista Mais Popular
da Internet e Melhor Rap. Ao contrário dos outros nomes aqui
assinalados, a música de Edson Silva, o nome de baptismo de NGA, não é
kizomba ou semba. É rap. Em Portugal, é conhecido nos circuitos do
hip-hop. Mas para o grande público é um ilustre desconhecido. Não
espanta. Na actual cultura fragmentada, é cada vez mais difícil perceber
o que é que a maioria consome. Existe cada vez mais distância entre a
realidade e a informação possível que nos é dada pelas tabelas de
vendas, pelos cartazes dos grandes festivais, pelo horário nobre das
televisões, nas rádios para consumo massificado ou na maior parte dos
jornais.
Há uns anos parecia ser relativamente
fácil perceber o que é que uma larga fatia da população ouvia. E agora?
Principalmente entre as novas gerações, torna-se cada vez mais difícil
obter um desenho aproximado da realidade. Habituámo-nos a olhar para
Portugal como um país onde nas últimas décadas reinou de forma
hegemónica a cultura rock global.
Mas ainda será assim? A verdade é que
nos grandes mercados da música, como o americano ou o britânico, há
muito que esse predomínio tem sido posto em causa, por um lado pela
afirmação global da cultura hip-hop, e tudo à volta, e por outro pelo
surgimento de bolhas locais. É o que tem acontecido em Portugal,
conquistado pela cultura hip-hop, em sentido lato, e pela afirmação nos
últimos anos de expressões devedoras da sua relação com os países
africanos de expressão portuguesa, como o kuduro ou a kizomba, formatos
que têm vindo a ser integrados numa ideia de cultura urbana negra
portuguesa.
É nesse caldeirão que se situam os nomes
que aqui trazemos, representativos de uma cultura hip-hop nacional
diversa e complexa. É verdade que existem pontos de contacto – em
particular na forma como todos afirmam a sua individualidade a partir de
colectivos –, mas acima de tudo há diferenças. De estilos, de
aproximações, de formas de estar na arte e na vida.
Ao mesmo tempo, todos eles acabam por
reflectir também a baralhação – com o que isso tem de saudável e
desconcertante – do Portugal contemporâneo. Afinal, quem são hoje as
estrelas pop portuguesas? Tony Carreira, talvez. Ana Moura, talvez.
Xutos & Pontapés, talvez. Ou talvez não. Porque hoje, por debaixo
dessa primeira camada notória, existem uma segunda e uma terceira
camadas, com menos visibilidade, mas talvez mais conectadas com aquilo
que é o concreto da música portuguesa actual. É aí que se situam uma
série de nomes em ligação com a cultura hip-hop como NGA, Regula ou
Jimmy P, por exemplo, capazes de atrair público ao largo das lógicas
clássicas.
É aí também que estão os Força Suprema
há mais de uma década no activo, agora com um renovado impulso. Em Abril
último, o colectivo formado por NGA, Don G, Masta e Prodígio deu um
espectáculo na Aula Magna, em Lisboa, com início às 19h e término pela
meia-noite. À porta, sem bilhete, ficaram centenas de pessoas. Lá dentro
viveu-se o ambiente das grandes manifestações colectivas, mesmo se
quase ninguém deu por isso. Como outros, vivem ainda à margem da
visibilidade mais institucional, mas têm uma ligação de grande
proximidade com o seu público. Sim, porque têm público. Muito público.
Basta consultar o número de visualizações dos seus vídeos no YouTube. Ou
assistir aos espectáculos por esse país fora.
Dois mundos
Há semanas, dois dias depois de mais um regresso de Luanda, onde têm feito digressões com regularidade, fomos encontrá-los no novo poiso, perto de Sintra, numa zona sossegada, povoada de vivendas. É aí que vivem. Aliás a Linha de Sintra foi desde sempre o seu lugar. A única diferença é que desde há um ano Edson Silva (NGA), Valter Carlos (Don G), Terêncio Neto (Masta) e Osvaldo Moniz (Prodígio) partilham a mesma casa. No andar de baixo, o estúdio, a cozinha e uma ampla zona exterior. No primeiro andar, os quartos.
Há semanas, dois dias depois de mais um regresso de Luanda, onde têm feito digressões com regularidade, fomos encontrá-los no novo poiso, perto de Sintra, numa zona sossegada, povoada de vivendas. É aí que vivem. Aliás a Linha de Sintra foi desde sempre o seu lugar. A única diferença é que desde há um ano Edson Silva (NGA), Valter Carlos (Don G), Terêncio Neto (Masta) e Osvaldo Moniz (Prodígio) partilham a mesma casa. No andar de baixo, o estúdio, a cozinha e uma ampla zona exterior. No primeiro andar, os quartos.
Para além deles há ainda os Dope Boyz,
um outro colectivo dentro do colectivo Força Suprema. “Os Força Suprema
existem há muitos anos. Começámos a gravar em 1999, num centro cultural
da Câmara de Rio de Mouro. Depois, há cerca de quatro anos, apareceram
Deezy e Monsta, mais novos, mas com histórias parecidas às nossas, putos
humildes e trabalhadores, e a ligação surgiu. Eles têm a sua cena
própria, mas acabam por fazer parte dos Força Suprema e partilhamos
todos o mesmo tecto”, explica NGA, o centro do colectivo.
Nasceram todos em Angola, vieram para
Portugal na infância ou na adolescência, fugindo da guerra com
familiares. “Estou aqui há cerca de 20 anos”, lembra NGA, “vim com a
minha mãe, como quase todos nós, fugindo dos conflitos, e a Linha de
Sintra acabou por ser a zona mais natural para nós, porque é um dos
lugares em toda a Europa com mais imigrantes africanos.”
Curiosamente, no seu caso, o bairro da
Graça, em Lisboa, foi o seu primeiro poiso. “Nessa altura pensava que a
Linha de Sintra era do outro lado do mundo”, ri-se, “mas um dia a minha
mãe veio ver uma casa nas Mercês e passei-me! De repente, vi gajos
vestidos como eu, de calças largas e tal, coisa que no centro de Lisboa
não se via, e quis logo mudar-me para aqui. Pensei: aqui vou encontrar
de imediato malta como eu!”
Assim aconteceu, com a música a servir
de elemento aglutinador. “Ouvíamos hip-hop português, Black Company,
Boss Ac ou Micro”, recorda Prodígio. “Não havia Internet como hoje e a
informação circulava de forma muito diferente. Havia festas de hip-hop
nas escolas, ou perdia-se o último comboio no regresso a casa e
dormia-se nas estações quando se ia até Lisboa para as festas em
Alcântara. Tudo por amor à música.”
Não era apenas a música. Nunca é. Era
também tudo o que a envolvia. “Aos fins-de-semana íamos às loja
Kingsize, a Lisboa, e aquilo era uma festa para mim”, lembra Don G.
“Havia ali uma concentração fascinante de artistas e de músicos, tudo à
volta do hip-hop. E depois existiam também a nossa amizade, o termos
crescido juntos, as miúdas, o gostarmos dos mesmos ténis ou dos carros,
enfim, tudo isso.”
Hoje movem-se nas avenidas da Internet
com agilidade, conectando-se com o mundo, mas não perdem de vista o
local. “Gostamos da Linha de Sintra”, resume NGA. “Dá para ir ao Fórum
Sintra e sentirmos que estamos na Europa e dá para ir à Damaia e comprar
mandioca na rua. Somos desses dois mundos. A nossa música reflecte
isso, com uma vibração mais afro e uma outra mais hip-hop, por causa
dessa vivência.”
Olhando como se movimentam pelo espaço,
percebe-se que têm tarefas precisas na casa. Todos trabalham em prol do
colectivo, apesar de NGA surgir como o mais respeitado. É ele que
explica o que os levou a viver em comunidade. “Com o tempo parecia que
as outras pessoas não nos entendiam e só entre nós é que estávamos bem.
Quando tive o meu primeiro filho – tenho quatro –, os meus manos foram
os padrinhos. Quando tirámos a carta, fizemo-lo juntos. Enfim, temos
imensas experiências partilhadas. E quando a música começou a dar algum
sustento decidimos, de forma muito natural, que poderíamos viver todos
juntos.”
Houve um outro facto importante. A morte
da mãe de NGA, no início do ano passado. Todos falam dela com emoção,
referindo-se-lhe respeitosamente como “a nossa mãe.” Lançaram aliás há
meses um DVD-compilação com vídeos do colectivo a que deram o nome
de 4Life, em sua homenagem. A razão não é difícil de descortinar.
“Quando vivíamos em Queluz, era na casa do NGA que gravávamos”, recorda
Deezy. “Passávamos mais tempo na casa dele do que nas nossas. A ‘nossa
mãe’ era a figura materna. Era ela que descobria as nossas primeiras
namoradas ou que nos dizia umas palavras quando via o primeiro charro
escondido no bolso do casaco.”
Na adversidade, resolveram unir-se ainda
mais, focando-se no trabalho: a música. “Esta é uma empresa familiar”
resume NGA, “se queremos sustentar este estilo de vida temos de
trabalhar mais para, no final do mês, termos as contas em dia.” Já se
percebeu. Os Força Suprema não são principiantes. Foram subindo vários
degraus, pacientemente, ao longo da última década. E aprendendo com os
revezes. “Passei por muita coisa, mas nunca perdi de vista que a minha
paixão era a música”, diz NGA. Em 2009, chegou a passar pela prisão
durante algumas semanas. A novidade chegou aos jornais. Nessas notícias,
os Força Suprema eram descritos como um gangue ligado ao rap que
gostava de vídeos com mulheres seminuas e carros de luxo e de roubar e
espancar rivais de outros bairros de Sintra. “Alguns jornalistas, quando
não compreendem o que se passa à sua volta, de imediato passam para
esse tipo de estereótipos”, reflecte NGA. “Na verdade o que aconteceu é
que existiu um desentendimento familiar num café, no contexto de um jogo
de futebol, e o rapaz com quem existiu o conflito estava com uns
amigos. Daí até dizerem que eram gangues foi um passo.”
Esses dias na prisão levaram-no a
pensar, ainda mais seriamente, na música. “Só pensava nisso, em rimas e
batidas. Aquilo estava a acontecer-me e eu só queria sair dali para pôr
em música o que estava a sentir, essa verdade, essa paixão.”
Um livro aberto
Os Força Suprema nunca desistiram, mesmo se nunca alcançaram o mesmo reconhecimento que os nomes mais populares da segunda ou da terceira geração do rap português (Valete, Sam The Kid, Dealema, Chullage, Halloween, Regula ou Capicua). A persistência tem sido recompensada. Em Portugal, em parte, graças à Internet. “Antes de a Internet se ter tornado no nosso principal veículo de comunicação fazíamos algumas cópias físicas e vendíamo-las em três ou quatro lojas. Com a Internet a mensagem espalhou-se”, afirma Deezy, “hoje as redes sociais são o nosso escritório. É a partir daí que fazemos a difusão”.
Os Força Suprema nunca desistiram, mesmo se nunca alcançaram o mesmo reconhecimento que os nomes mais populares da segunda ou da terceira geração do rap português (Valete, Sam The Kid, Dealema, Chullage, Halloween, Regula ou Capicua). A persistência tem sido recompensada. Em Portugal, em parte, graças à Internet. “Antes de a Internet se ter tornado no nosso principal veículo de comunicação fazíamos algumas cópias físicas e vendíamo-las em três ou quatro lojas. Com a Internet a mensagem espalhou-se”, afirma Deezy, “hoje as redes sociais são o nosso escritório. É a partir daí que fazemos a difusão”.
Curiosamente, é no mercado angolano,
actuando ainda de forma tradicional, que têm obtido mais reconhecimento,
beneficiando talvez de um contexto no qual a alta burguesia angolana
tem investido na debilitada economia portuguesa. Durante largos anos,
Angola era apenas a terra mítica dos pais onde tinham nascido, mas que
nunca haviam visitado. Nos últimos anos essa realidade transformou-se.
“Começou com algumas mixtapes que entregamos a amigos que iam lá, até
que um dia alguém nos convidou para actuar”, resume Masta, “e desde
então já fomos muitas vezes, actuando para mil ou dez mil pessoas, o que
foi mudando as nossas vidas.”
Na sua afirmação em Angola, e em
Portugal, foram decisivos os vídeoclipes. Nos dois últimos vídeos, dos
singles Normal e Champanhe, que se seguiram à edição no ano passado do
álbum King, NGA trabalhou com um dos realizadores portugueses mais
activos nos últimos tempos, Alexandre Azinheira (Clã, PZ, X-Wife). Os
valores de produção envolvidos nada têm a ver com o que é normal no meio
português, com uma vasta equipa, vários dias de filmagens, helicópteros
e até uma equipa de alguns membros dos GOE a participar no processo.
“Queremos trabalhar com os melhores, não ter medo de aprender, e para
isso temos de investir a sério na nossa arte, indo o mais longe
possível”, justifica NGA.
Em Dezembro foram recebidos no palácio
presidencial de José Eduardo dos Santos e a impressão foi positiva.
“Fomos muito bem recebidos”, conta NGA, “o presidente estava a comer e
levantou-se humildemente para nos cumprimentar e a primeira-dama pediu
para tirar uma foto com o Prodígio”. A música do colectivo pode ser dura
e sombria, não recusando a linguagem vernacular e as alusões sexuais,
mas até agora não sentiram qualquer espécie de censura. “Não controlamos
como é que os receptores recebem a nossa música e até pode acontecer
que nos coloquem limitações, mas nós não somos de colocar a nós próprios
barreiras. Ninguém tem o livro mais aberto do que nós.”
Na altura da criação todos colaboram uns
com os outros, apesar de cada um ter o seu percurso a solo. NGA é o
mais consolidado. “A minha cena é mais rap americano, por causa das
batidas”, diz, “enquanto que o Don G é mais luso e orgânico e existem
outros com influências reggae, por exemplo. Cada um acaba por ter a sua
identidade definida, apesar de existir uma espécie de embrião
colectivo.”
Esta semana vão estar à volta de
Prodígio. É que este acaba de lançar o álbumProdígios – através da
editora que detêm, a Dope Muzik, que depois traça diversos acordos de
distribuição – e todos os esforços dos seis Força Suprema irão
concentrar-se na ajuda a Osvaldo Moniz. Depois existe um outro
objectivo: conquistar o Brasil. Sabem que não será fácil.
“Mas porque não?”, respondem, “Já existe
algum interesse, falamos a mesma língua e ao longo dos anos também já
fomos provando a nós próprios que não existem impossíveis.”

Nenhum comentário:
Postar um comentário